quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Cultura lúdica na biblioteca_por Flávio Paiva

Em um texto que escreveu sobre a obra do escritor uruguaio Horácio Quiroga (1878 - 1937), Monteiro Lobato (1882 - 1978) argumenta que a infância precisa de uma ´literatura ao ar livre´ e para isso necessita que essa literatura seja produzida por quem ´viveu a vida´, como Quiroga. Encontrei essa chave de abertura para o respeito à cultura lúdica, no livro ´Semear Horizontes´ (Ed. UFMG, 2007) da educadora Gabriela Pellegrino Soares, professora de História da América Independente, da Universidade de São Paulo, que comprei na VIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, realizada em Fortaleza de 12 a 21 de novembro de 2008.

A observação de Lobato me chama a atenção para o quanto temos criado de recursos de aproximação da criança com o livro, mas também para o quanto temos sido negligentes com relação ao significado de escrever para crianças. Existem livrinhos de pelúcia, de borracha para morder e de plástico para a hora do banho. Tem livro-brinquedo, em forma de carro, de animal e de figuras geométricas. Com relevo nas páginas e papelão articulado, as lojas estão cheias de publicações. Livros com ilustrações atraentes, mas nem sempre com conteúdo honesto, é o que não falta. E as calçadas das escolas, os espaços das bibliotecas e os stands das feiras são invadidos por livros sem autores, sem alma, livros pardais, a furar os ovos da imaginação com seus bicos disfarçados de nota de um real.

Tive a oportunidade de melhorar a minha percepção com relação à situação do livro e da leitura, ao discutir o tema com uma platéia formada por atentos cuidadores de bibliotecas, em palestra que fiz dia 19/11/2008, no auditório da biblioteca da Universidade de Fortaleza, por ocasião do IV Encontro do Sistema Estadual de Bibliotecas, SEBP, que integrou a programação da VIII Bienal Internacional do Livro do Ceará. Na agradável companhia das educadoras Fátima Portela, professora do Curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Ceará, e Ruth Pontes, coordenadora estadual do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, Proler, conversamos sobre a ´dinamização de acervos com a literatura infantil´.

Tanto quanto de bons livros, a biblioteca precisa significar espaço de tempo livre onde a criança possa exercitar a imaginação em diálogos literários que respeitem à sua individualidade, estimulem a sociabilidade e autonomia criativa. Cecília Meireles (1901 - 1964), escritora que abraçou a causa do livro e da leitura, dizia com muita lucidez que as crianças gostam de histórias ricas em conteúdo humano. Maria Amélia Pereira, fundadora e orientadora do centro de estudos Casa Redonda, de Carapicuíba, reforça a atualidade desse conceito ao assegurar que o melhor livro infantil é aquele que expressa a relação do ser humano com o mundo na sua forma mais verdadeira.

A promoção da leitura e a democratização do livro, como política de Estado, decorrente dos ideais republicanos de universalização da educação, é uma bandeira empunhada pelo governo do Ceará, terra que em apenas dois séculos de emancipação política, tem uma biblioteca inaugurada em 1867. Lourenço Filho (1897 -1970), que em 1922 mudou-se para Fortaleza com a missão de fazer uma reforma na educação pública cearense, comparava a literatura ao jogo e à brincadeira, por entender sua força de atuação preponderante no campo da imaginação e colocava a literatura infantil como complemento à educação escolar na formação plena das pessoas.

O espaço da literatura na educação vem contando com muitas contribuições no último século. Em 1907, a educadora mineira Alexina de Magalhães Pinto (1870 - 1921) publicou um ´Esboço provisório de uma biblioteca infantil´. O lema ´republicanizar a República´ foi utilizados por educadores brasileiros em 1924, dentro do convencimento de que na educação residia o alicerce para o desenvolvimento. Dez anos depois, Anísio Teixeira (1900 - 1971) criou a Biblioteca Popular Infantil do Rio de Janeiro, deliberadamente como um local de encantamento e de pesquisa.

Temas que abordam a questão do ´progresso´, sem ser às custas da degradação ambiental, vêm sendo tratados no Brasil pela literatura sincera para crianças desde o começo do século passado, em obras como ´A filha da floresta´ (Ed. Melhoramentos, 1921), de Thales de Andrade (1890 - 1977) que, em plena onda de urbanização, falava da aventura de viver com simplicidade no campo, ´sem luxo e sem se importar com a fama´; e em obras como ´A Reforma da Natureza´ (Cia Editora Nacional 1941), de Monteiro Lobato, livro no qual a boneca Emília tenta ´consertar´ o mundo vegetal e animal no Sítio da Dona Benta, enquanto a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945) ´desconserta´ o resto do mundo.

Gabriela Pellegrino lembra bem que uma das principais característica da pedagogia lobatiana é que nela as crianças sempre deixam temporariamente o amparo físico e intelectual dos adultos para, munidos de fantasia, enfrentar os desafios do mundo interior e exterior. Depois de brincarem, retornam para casa ´vitoriosas e amadurecidas pelas experiências vividas´. O pensador cubano José Martí (1853 - 1895) dizia que se tivesse que optar entre falar da cultura grega e romana ou dos Astecas, Maias e Incas, ficaria com a segunda opção. Rabindranath Taqgore (1861 - 1941), escritor e educador indiano, também defendia os espaços educacionais como ambientes que as crianças pudessem freqüentar com prazer, porque neles teriam ampla liberdade de brincar, de se relacionar com a natureza e de vivenciar lições de cidadania.

Na Declaração dos Direitos das Crianças, feita em 1927 pela poeta chilena Gabriela Mistral (1889 - 1957), o reconhecimento da infância, como tempo do exercício da criatividade e da sensibilidade aparece como um apelo de permanente atualidade: ´Não deixar de pedir para a criança a escola com sol, o livro, as imagens dos contos, nem cessar de dizer não a tudo o que desfigura sua alma e a violenta´. Esta citação está nos estudos de Pellegrino, no qual a ativista das bibliotecas populares, aparece defendendo a combinação de mídias na biblioteca, desde que não derive para a banalidade. Para ela, a leitura, mais do que distração, é um meio que ´muitas vezes nos finca melhor em nós mesmos´.

No início do século passado, a ´paixão da criatura pela imagem´ estava mais direcionada para a novidade do cinema. Hoje, essa atração está mais acentuada nas telas de televisão e de computador. O tempo passa e cada vez mais fica provado que as novas mídias não são inimigas do livro. Quando bem utilizadas podem tornar-se grandes aliadas da difusão do livro e da formação de leitores. A tecnologia precisa ser posta a serviço das pessoas e não o contrário. Das aplicações dos recursos do mundo digital na educação, a de reforço à aproximação da criança com o livro e de estímulo à leitura é sem dúvida uma das mais desejáveis.

A escritora Ana Maria Machado diz que a literatura infantil brasileira só encontra paralelo na literatura infantil inglesa. A diferença é que no Brasil ainda não despertamos para fazer filmes inspirados em nossas próprias histórias infantis. A relação filme e literatura é mágica. Um dia desses, o meu filho Artur, de sete anos, me perguntou qual a razão de a gente vê um filme do Harry Potter em apenas duas horas e de levar mais de um mês para ler o livro, se a história é a mesma. Respondi por linhas gerais, que no filme o diretor escolhe o que quer que a gente veja, enquanto no livro não há escolhas, são os significados que damos às palavras que nos contam a história. E o segredo está na escolha do livro.
Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=593263 COLUNA (27/11/2008)

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