domingo, 18 de maio de 2008
Sonhos e bibliotecas, por Edmir Perroti_Revista Carta na Escola
Olá, Rede!
Segue artigo publicado pelo Prof. Edmir Perroti na Revista Carta na Escola deste mês - boa leitura!
Sonhos e bibliotecas
por Edmir Perroti, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP
Em vez de meros depósitos de livros, bibliotecas públicas deveriam ser plataformas de lançamento a novos conhecimentos
Nos anos 30 do último século, um grupo de intelectuais, liderado por Mário de Andrade, sonhou um projeto cultural de envergadura para a cidade de São Paulo: a criação de bibliotecas públicas, abertas à população em geral, em vários pontos da cidade. A iniciativa foi – e, poderá continuar sendo, se retomada em termos contemporâneos – contribuição fundamental à luta contra o analfabetismo e o iletrismo que, lastimavelmente, marcam ainda hoje nossa cena educacional e cultural.
Reconhecendo a importância de formar leitores, ou seja, o papel educativo, cultural e socializador das bibliotecas, o grupo, além das dirigidas para adultos, idealizou também a criação de uma rede voltada especificamente para crianças e jovens, das quais a Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, criada em 1935, foi a primeira.
Tal movimento desembocou na criação da maior e mais complexa rede de bibliotecas públicas do País, cujo apogeu durou desses anos iniciais até os 60, quando a massificação começa a se impor como padrão dominante das políticas públicas de educação e cultura no País. A partir dos anos 70 esse formidável patrimônio cultural perde o rumo e até hoje, infelizmente, não conseguiu se refazer nem sequer compreender o que lhe aconteceu e está acontecendo.
Quem, por exemplo, freqüentou a Biblioteca Monteiro Lobato em seu período áureo, encontrou ali um ambiente estimulante e vivo, onde era possível estar em contato com acervos diversificados e atualizados de periódicos e livros, alguns, inclusive, em línguas estrangeiras. Além de importante centro irradiador, a biblioteca “dos modernistas” era local de intensa produção e intercâmbio simbólicos, de interações de importância essencial à inscrição dos seus freqüentadores nas tramas da criação cultural.
Na Monteiro Lobato, além das atividades fundamentais de leitura, da Hora do Conto, havia oficinas permanentes de criação literária, de artes plásticas, de confecção de jornais; havia, também, cotidianamente, encenações teatrais, debates, palestras, encontros com autores e muitas coisas mais. O jornal A Voz da Infância fez história, na biblioteca. Muitas cabeças boas, que produziram e até hoje produzem informação e cultura no País, publicaram seus primeiros escritos ali.
Da mesma forma, criações teatrais do Teatro da Biblioteca Monteiro Lobato (Timol) emocionaram e fizeram pensar milhares de crianças. Um ator e diretor hoje conhecido de todos, Marcos Caruso, não só se formou nesse grupo, como, depois de adulto, dirigiu-o por bastante tempo. Contemporânea da primeira biblioteca infantil criada em Paris, em 1925, a Biblioteca Monteiro Lobato era motivo de orgulho especial para aqueles que tinham oportunidade de freqüentá-la. Suas realizações, suas dinâmicas, aliadas à imponência do novo prédio que até hoje resiste, implantado nos anos 50 no Centro de São Paulo, apontavam não só para a memória cultural da produção infanto-juvenil, mas para o presente e o futuro. A Monteiro Lobato alimentava esperanças. A partir dela, podíamos vislumbrar cidadãos capazes de tomar os destinos do País nas mãos.Apropriação ou expropriação Exemplo como esse nos permite chamar a atenção para a diferença existente entre um mero depósito de livros e um ambiente efetivo de conhecimento e cultura. Aqueles que tiveram a oportunidade de freqüentar a Lobato sabem que existem diferenças fundamentais entre políticas públicas de democratização e políticas de massificação cultural, entre práticas de apropriação e práticas de expropriação simbólica, vigentes entre nós desde a colonização. As primeiras acolhem, abraçam, abrem espaço, incentivam as trocas, o livre-intercâmbio de idéias; as segundas banem, afugentam, excluem.
Para superar condições de mero entreposto e tornar-se espaço de cultura vivo, dinâmico, atrativo, a biblioteca não pode simplesmente existir, entregando ao acaso sua dinamização. É preciso atuar, agir, criar metodologias e estratégias compatíveis com projetos históricos empenhados em reverter o quadro de exclusão que sempre marcou a vida nacional; é preciso combinar opções de políticas públicas inclusivas com práticas culturais da mesma natureza, criando-se uma dinâmica entre macro e micro ações visando à participação e inclusão de todos nos processos de conhecimento e cultura.
Ao mesmo tempo que uma biblioteca contemporânea deve ser aberta a novos leitores (e também aos não leitores), é indispensável concebê-la, também, como plataforma de lançamento, ponto de acesso dos diferentes públicos a circuitos culturais amplos e diversificados. As bibliotecas devem ser como as estações, ou seja, pontos de chegada e de partida em direção aos demais dispositivos culturais da cidade, do País, do mundo. Em suma, trata-se de inserir os sujeitos não apenas na biblioteca, mas nas ricas e intrincadas tramas simbólicas de nosso tempo.
A qualidade e o compromisso público dos que nela trabalham também são elementos centrais nas políticas de apropriação cultural. Sem compreensão do papel fundamental que exercem, sem formação de base e continuada, compatível com tal compreensão, sem interesse efetivo pelos bens simbólicos, dificilmente esses profissionais serão percebidos ou se perceberão como protagonistas culturais. Não há, pois, como deixar de considerar a qualidade essencial dos mediadores. Em última análise, é no “aqui e agora” do concreto que os atos culturais ganham sentido. Mediadores desmotivados, despreparados, desinteressados, alheios às questões culturais gerais, bem como às dinâmicas singulares de seu universo imediato, não estão em condições de atender às exigências feitas por projetos destinados a reverter os caminhos excludentes da cultura no País. Elo com a comunidadeO compromisso com uma biblioteca ativa, inventiva e participativa implica também criação de vínculos fortes com o meio em que ela se encontra. Nesse sentido, torna-se necessário não só levar a biblioteca à comunidade, mas também trazer essa e sua memória, suas histórias, suas realizações significativas para dentro da biblioteca. Uma instituição distante não cria elos fortes e duradouros com seu público.
É preciso transitar pela cultura local, da mesma forma que pela universal. É preciso buscar e coletar a memória da comunidade, registrá-la, dar-lhe forma e sentido, recriá-la, disponibilizá-la sob diferentes formas, como exposições, boletins, livros e álbuns fotográficos, tal como faz a Estação Memória, projeto criado por nós, na USP, e implantado na Biblioteca Infanto-Juvenil Álvaro Guerra, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. A atenção voltada à cultura local é contraponto necessário aos processos de globalização, num movimento dinâmico e essencial de interpenetração entre o próximo e o distante, o aqui e o lá, o “nosso” e o “do outro”.
A biblioteca contemporânea não pode aceitar o papel de entreposto de signos que as políticas e práticas de expropriação cultural sempre adotaram e continuam adotando. Deve, antes, estar antenada com as exigências de seu tempo e momento, tal como preconizou, em sua época, o grupo de intelectuais ligado a Mário de Andrade.
Assim consideradas, as bibliotecas herdadas dos “modernistas” poderão ser redimensionadas, desempenhando novamente o papel cultural essencial do passado. Não serão, em tais condições, dispositivos restritos a pequenos grupos, pertencentes em geral às elites econômicas ou intelectuais. Serão, como em várias partes do mundo e ao alcance de todos, recursos essenciais de participação na cultura. Nossos modernistas, com certeza, estarão felizes se tivermos a capacidade de reativar sonhos de inteligência e beleza na vida do País.
Fonte: http://www.cartanaescola.com.br/edicoes/26/sonhos-e-bibliotecas
Segue artigo publicado pelo Prof. Edmir Perroti na Revista Carta na Escola deste mês - boa leitura!
Sonhos e bibliotecas
por Edmir Perroti, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP
Em vez de meros depósitos de livros, bibliotecas públicas deveriam ser plataformas de lançamento a novos conhecimentos
Nos anos 30 do último século, um grupo de intelectuais, liderado por Mário de Andrade, sonhou um projeto cultural de envergadura para a cidade de São Paulo: a criação de bibliotecas públicas, abertas à população em geral, em vários pontos da cidade. A iniciativa foi – e, poderá continuar sendo, se retomada em termos contemporâneos – contribuição fundamental à luta contra o analfabetismo e o iletrismo que, lastimavelmente, marcam ainda hoje nossa cena educacional e cultural.
Reconhecendo a importância de formar leitores, ou seja, o papel educativo, cultural e socializador das bibliotecas, o grupo, além das dirigidas para adultos, idealizou também a criação de uma rede voltada especificamente para crianças e jovens, das quais a Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, criada em 1935, foi a primeira.
Tal movimento desembocou na criação da maior e mais complexa rede de bibliotecas públicas do País, cujo apogeu durou desses anos iniciais até os 60, quando a massificação começa a se impor como padrão dominante das políticas públicas de educação e cultura no País. A partir dos anos 70 esse formidável patrimônio cultural perde o rumo e até hoje, infelizmente, não conseguiu se refazer nem sequer compreender o que lhe aconteceu e está acontecendo.
Quem, por exemplo, freqüentou a Biblioteca Monteiro Lobato em seu período áureo, encontrou ali um ambiente estimulante e vivo, onde era possível estar em contato com acervos diversificados e atualizados de periódicos e livros, alguns, inclusive, em línguas estrangeiras. Além de importante centro irradiador, a biblioteca “dos modernistas” era local de intensa produção e intercâmbio simbólicos, de interações de importância essencial à inscrição dos seus freqüentadores nas tramas da criação cultural.
Na Monteiro Lobato, além das atividades fundamentais de leitura, da Hora do Conto, havia oficinas permanentes de criação literária, de artes plásticas, de confecção de jornais; havia, também, cotidianamente, encenações teatrais, debates, palestras, encontros com autores e muitas coisas mais. O jornal A Voz da Infância fez história, na biblioteca. Muitas cabeças boas, que produziram e até hoje produzem informação e cultura no País, publicaram seus primeiros escritos ali.
Da mesma forma, criações teatrais do Teatro da Biblioteca Monteiro Lobato (Timol) emocionaram e fizeram pensar milhares de crianças. Um ator e diretor hoje conhecido de todos, Marcos Caruso, não só se formou nesse grupo, como, depois de adulto, dirigiu-o por bastante tempo. Contemporânea da primeira biblioteca infantil criada em Paris, em 1925, a Biblioteca Monteiro Lobato era motivo de orgulho especial para aqueles que tinham oportunidade de freqüentá-la. Suas realizações, suas dinâmicas, aliadas à imponência do novo prédio que até hoje resiste, implantado nos anos 50 no Centro de São Paulo, apontavam não só para a memória cultural da produção infanto-juvenil, mas para o presente e o futuro. A Monteiro Lobato alimentava esperanças. A partir dela, podíamos vislumbrar cidadãos capazes de tomar os destinos do País nas mãos.Apropriação ou expropriação Exemplo como esse nos permite chamar a atenção para a diferença existente entre um mero depósito de livros e um ambiente efetivo de conhecimento e cultura. Aqueles que tiveram a oportunidade de freqüentar a Lobato sabem que existem diferenças fundamentais entre políticas públicas de democratização e políticas de massificação cultural, entre práticas de apropriação e práticas de expropriação simbólica, vigentes entre nós desde a colonização. As primeiras acolhem, abraçam, abrem espaço, incentivam as trocas, o livre-intercâmbio de idéias; as segundas banem, afugentam, excluem.
Para superar condições de mero entreposto e tornar-se espaço de cultura vivo, dinâmico, atrativo, a biblioteca não pode simplesmente existir, entregando ao acaso sua dinamização. É preciso atuar, agir, criar metodologias e estratégias compatíveis com projetos históricos empenhados em reverter o quadro de exclusão que sempre marcou a vida nacional; é preciso combinar opções de políticas públicas inclusivas com práticas culturais da mesma natureza, criando-se uma dinâmica entre macro e micro ações visando à participação e inclusão de todos nos processos de conhecimento e cultura.
Ao mesmo tempo que uma biblioteca contemporânea deve ser aberta a novos leitores (e também aos não leitores), é indispensável concebê-la, também, como plataforma de lançamento, ponto de acesso dos diferentes públicos a circuitos culturais amplos e diversificados. As bibliotecas devem ser como as estações, ou seja, pontos de chegada e de partida em direção aos demais dispositivos culturais da cidade, do País, do mundo. Em suma, trata-se de inserir os sujeitos não apenas na biblioteca, mas nas ricas e intrincadas tramas simbólicas de nosso tempo.
A qualidade e o compromisso público dos que nela trabalham também são elementos centrais nas políticas de apropriação cultural. Sem compreensão do papel fundamental que exercem, sem formação de base e continuada, compatível com tal compreensão, sem interesse efetivo pelos bens simbólicos, dificilmente esses profissionais serão percebidos ou se perceberão como protagonistas culturais. Não há, pois, como deixar de considerar a qualidade essencial dos mediadores. Em última análise, é no “aqui e agora” do concreto que os atos culturais ganham sentido. Mediadores desmotivados, despreparados, desinteressados, alheios às questões culturais gerais, bem como às dinâmicas singulares de seu universo imediato, não estão em condições de atender às exigências feitas por projetos destinados a reverter os caminhos excludentes da cultura no País. Elo com a comunidadeO compromisso com uma biblioteca ativa, inventiva e participativa implica também criação de vínculos fortes com o meio em que ela se encontra. Nesse sentido, torna-se necessário não só levar a biblioteca à comunidade, mas também trazer essa e sua memória, suas histórias, suas realizações significativas para dentro da biblioteca. Uma instituição distante não cria elos fortes e duradouros com seu público.
É preciso transitar pela cultura local, da mesma forma que pela universal. É preciso buscar e coletar a memória da comunidade, registrá-la, dar-lhe forma e sentido, recriá-la, disponibilizá-la sob diferentes formas, como exposições, boletins, livros e álbuns fotográficos, tal como faz a Estação Memória, projeto criado por nós, na USP, e implantado na Biblioteca Infanto-Juvenil Álvaro Guerra, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. A atenção voltada à cultura local é contraponto necessário aos processos de globalização, num movimento dinâmico e essencial de interpenetração entre o próximo e o distante, o aqui e o lá, o “nosso” e o “do outro”.
A biblioteca contemporânea não pode aceitar o papel de entreposto de signos que as políticas e práticas de expropriação cultural sempre adotaram e continuam adotando. Deve, antes, estar antenada com as exigências de seu tempo e momento, tal como preconizou, em sua época, o grupo de intelectuais ligado a Mário de Andrade.
Assim consideradas, as bibliotecas herdadas dos “modernistas” poderão ser redimensionadas, desempenhando novamente o papel cultural essencial do passado. Não serão, em tais condições, dispositivos restritos a pequenos grupos, pertencentes em geral às elites econômicas ou intelectuais. Serão, como em várias partes do mundo e ao alcance de todos, recursos essenciais de participação na cultura. Nossos modernistas, com certeza, estarão felizes se tivermos a capacidade de reativar sonhos de inteligência e beleza na vida do País.
Fonte: http://www.cartanaescola.com.br/edicoes/26/sonhos-e-bibliotecas
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