sábado, 27 de setembro de 2008

E os livros foram parar na cadeia...

Sidnei Rosa tentou, em vão, "libertar" o acervo de São Francisco Xavier e acabou montando biblioteca na garagem de casa
Patrícia Villalba

As crianças viam os livros através das grades em São Francisco Xavier, pequena cidade da Serra da Mantiqueira, quando o bibliotecário Sidnei Rosa chegou à cidade, para passar férias na casa do pai. Ele, que já havia trabalhado na estruturação de diversas bibliotecas pelo Paraná e Mato Grosso, não imaginava que justamente ali, na sua terra natal, o acesso aos livros poderia ser restrito. Num arroubo digno do realismo fantástico, o poder público trancafiou o acervo da cidade numa cela da cadeia pública. "Trancaram e, pronto, ninguém mais tinha acesso, ninguém sabia onde estava a chave", lembra ele.Sidnei se deparou com a situação quando alunos foram bater à sua porta, em busca de livros para um trabalho sobre o Mercosul. Como eles, foi "de cá pra lá" atrás dos livros, também sem sucesso. "Ia à prefeitura, e me mandavam procurar a chave (da cela) na escola. Na escola, diziam que a chave estava na prefeitura. Não consegui abrir aquela cela de jeito nenhum", lamenta. "Um dia eu saí de lá doido da vida e pensei: Vou montar uma biblioteca aqui?."E foi o que ele fez, na garagem da casa de seu pai - Rua 15 de Novembro, número 50. Antes, ele tentou convencer as autoridades locais a cederem um espaço para o projeto. "Fiz várias sugestões de imóveis que poderiam ser destinados à nova biblioteca, mas em vão. Foi quando meu pai me ofereceu a garagem de casa", conta. "Eu disse que tudo bem, desde que ele deixasse de morar aqui."Sidnei, então, envolveu toda a cidade no projeto Biblioteca Solidária, que inaugurou sua primeira fase em 2004, ainda na garagem. Logo, entretanto, o acervo tomaria conta de toda a casa de Seu Getúlio, que passaria por grande reforma. "A (montadora) GM doou 5 mil reais, para colocar o forro, por exemplo, mas eu precisava trocar a parte elétrica. Fiz, então, duas listas de material, tipo lista de casamento, sabe? Deixei na loja de material de construção da cidade e cada um contribuiu como pôde", detalha Sidnei, que recebe hoje o escritor gaúcho Marcelo Carneiro da Cunha para um bate-papo com leitores, dentro do projeto Viagem Literária (leia abaixo).
Animação em pessoa, Sidnei trabalha como voluntário e usa a criatividade para fazer render o orçamento da biblioteca, basicamente gerado por doações dos 50 membros da Associação de Amigos e patrocínios esporádicos - neste ano, em boa fase, ele conta com a Petrobrás e a Faberweb. As doações dos amigos garantem o pagamento das despesas básicas, como água, telefone e energia elétrica. E os patrocínios especiais vão para a compra de equipamentos, como computadores e o ar-condicionado que garante a integridade do acervo. "Os amigos contribuem mensalmente com 20, 30 ou 50 reais. Se atrasa, não tem problema - não acho legal ficar cobrando. O pouco que a gente recebe parece que cresce, e isso é maravilhoso", diz o quixotesco bibliotecário.É um trabalho que aparece bastante, muito além do simples emprestar livros. Contação de histórias, cursos (inglês, inclusão digital, educação ambiental, culinária para crianças) e sessões de filmes são algumas das atividades que movimentam a Biblioteca Solidária. Sidnei só não sabe medir a quantidade de pessoas que retiram livros, pelo simples princípio de desburocratizar o empréstimo. "Não sei quantos são, mas tenho uma lista de A a Z imensa. As pessoas têm liberdade de pegar o livro sem depender de um comprovante de residência ou de uma foto 3x4", diz. "Eles devolvem? Devolvem, pela confiança. Aqui é tudo do público. O meu interesse é que os livros circulem."

Quinta-Feira, 18 de Setembro de 2008 - Caderno 2 http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080918/not_imp243700,0.php

Um comentário:

Neide Oliveira disse...

Elis,

Como eu consegui deixar passar este relato-reportagem do Sidnei Rosa "E os livros foram parar na cadeia..." Muito comovente a história dele. Por que será que relação afetiva com o livro sempre é tão marcada por dificuldades, sonhos e desejos? Ainda bem que a sua determinação, idealismo e teimosia foram mais fortes. Tal depoimento, serve como incentivo e estímulo para não desistirmos no primeiro obstáculo. Como diz Drummond "No caminho tinha uma pedra".
Adorei a sua contribuição.
Abraços,

Neide